Domingues, José Domingos Garcia, filósofo, arabista e historiador (18 Maio 1910, Silves, Portugal – 1 Maio 1989, Lisboa)
Originário de Silves, Garcia Domingues termina a licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1932, onde foi discípulo do arabista David Lopes. A sua dedicação à investigação tem duas fases. A primeira fase resulta da sua participação no movimento nacional-sindicalista português, entre as décadas de 30 e 40, marcada pela sua aberta germanofilia e admiração pelo nazismo. A segunda, resultante do seu afastamento da vida política, após a sua prisão pelo Estado Novo, destaca-se pela sua dedicação aos estudos árabes e passado islâmico de Portugal.
Proveniente de uma família monárquica, Garcia Domingues inicia a sua actividade política participando no Integralismo Lusitano, em Lisboa. Torna-se professor do Liceu Nacional de Faro, cidade onde em 1932 funda o núcleo algarvio do Movimento Nacional-Sindicalista, de extrema-direita, liderado por Francisco Rolão Preto. Considerando-se parte da “geração fascista”, torna-se secretário da secção cultural do movimento (Duarte 2007, 191). Em 1933 regressa a Lisboa para desempenhar as funções de Inspector-Orientador do Ensino Primário, sendo destituído em 1939, após a sua prisão.
É preso em 1934 e novamente em 1938, devido ao seu envolvimento na revolta reviralhista de Mendes Norton, à direita do ditador António de Oliveira Salazar, que contou com o apoio de monárquicos e nacionais-sindicalistas. No seu livro O Pensamento Alemão. Ensaio sobre o Sentido da Alma Germânica e Espírito da Nova Europa (1942) elogia a “marcha” do nacional-socialismo de Hitler ao lado do fascismo de Mussolini, reflectindo sobre o “arianismo alemão” e a índole universalista do nacional-socialismo (Torgal 2017, 329-354).
Termina a tese de doutoramento em Filosofia, em 1939, Da Essência, da existência e da valência, que não será aceite, aparentemente devido à sua actividade política (Kemnitz 1997, 36). Neste contexto, começa a dedicar-se à investigação do legado islâmico de Portugal, prosseguindo os estudos de árabe com Joaquim Figanier, também discípulo de David Lopes.
Ainda que Portugal na Espanha Árabe (1972-1975), de António Borges Coelho, seja a obra de divulgação mais citada sobre o ocidente peninsular islâmico, o livro de Garcia Domingues, História luso-árabe. Episódios e figuras meridionais (1945), é possivelmente a primeira investigação monográfica no país dedicada exclusivamente à história do passado islâmico. Fruto da leitura atenta das fontes árabes, o livro reúne um conjunto de relatos e personagens do Gharb al-Andalus (ocidente do al-Andalus), com o intuito de divulgar o passado islâmico, ignorado pela narrativa tradicional da Reconquista cristã.
Entre 1949 e 1964, prossegue a sua investigação com várias bolsas do Instituto de Alta Cultura e da Fundação Calouste Gulbenkian, para estudar árabe, especialmente na Universidade de Madrid. Entre 1964 e 1973, inicia o projecto de tese de doutoramento na Universidade de Córdova, sobre a filosofia e misticismo do líder da efémera taifa* de Silves, Ibn Qasi (m. 1151), cuja independência vê como precursora de sentimentos proto-nacionais lusos, à semelhança daqueles que nascem dentro da historiografia do al-Andalus no país vizinho. Entre 1975 e 1984, usufruindo de bolsas da Secretaria Geral da Cultura e da Fundação Gulbenkian, regressa a Espanha, onde trabalha na sua tese “Pensamento teológico, místico e político de Ahmad Ibn Qasi segundo o tratado Khal’ al-Naʻlain,” tratado que se propõe traduzir e comentar, orientado por Félix Pareja e Mártinez Montávez.
Garcia Domingues criou várias instituições, como a Secção de Estudos Árabes da Sociedade de Geografia ou o Instituto de Estudos Árabes do Algarve. Entre 1983 e 1988, ensina árabe na Universidade do Algarve.
As tendências historiográficas do país vizinho revelam-se em Garcia Domingues através da adopção de conceitos semelhantes a “España árabe” ou “España musulmana”, como o título do seu livro, “História luso-árabe”. Tal como no caso espanhol, onde se dá o sequestro do al-Andalus como uma identidade exclusivamente espanhola e proto-nacional (Marín 2014), há também uma apropriação do Gharb al-Andalus como uma identidade proto-portuguesa, de forma a integrá-la na narrativa nacional. Assim, faz coincidir do ponto de vista identitário e territorial o Gharb al-Andalus com a província antiga da Lusitânia e com o Portugal cristão medieval, moderno e contemporâneo, pretendendo que essa formação identitária já existia em época islâmica e antiga. Neste contexto, define um “espírito de cultura luso-árabe,” protagonizando uma nacionalização e “lusoficação” do Gharb al-Andalus (Cardoso, a publicar).
Gharb al-Andalus é também usado como sinónimo de Algarve, como por exemplo em “Ibn ‘Ammar de Silves, O Maior Poeta Árabe do Algarve” (Garcia Domingues 1997). Assim, Garcia Domingues tenta “corrigir” as fontes de forma a identificar os mesmos limites geográficos entre o Gharb al-Andalus e Portugal, excluindo do Gharb cidades actualmente espanholas abrangidas pelos geógrafos árabes (García Sanjuán 2009, 4-5; a publicar; Garcia Domingues 1967, 332, 338, 345-347).
O seu interesse sobre o al-Andalus parece centrar-se mais numa identidade moçárabe (cristãos aculturados à cultura árabo-muçulmana) do que sobre as suas características islâmicas ou árabes. Chega a afirmar numa entrevista a ausência do impacto islâmico na cultura portuguesa posterior, identificando-se jocosamente como um arabista anti-árabe (Vakil 2003, 8). Pinharanda Gomes refere mesmo que Garcia Domingues “foi o nosso último moçárabe”, já que as investigações genealógicas de Garcia Domingues fariam remontar as suas origens a uma família moçárabe do séc. XII (Gomes 2010).
Apesar de a historiografia portuguesa já ter apontado que foi à esquerda do regime do Estado Novo que surge o interesse pelo passado islâmico de Portugal (Fernandes e Rei 2011, 547-561), a figura de Garcia Domingues, muitas vezes marginalizada, ainda que pioneira para os estudos árabes e islâmicos em Portugal, revela que esta área científica floresce e ecoa também em meios de índole conservadora, o que não é surpreendente, atendendo à faceta nacionalista presente nos seus estudos.
*taifa: definição que, pejorativamente, as fontes árabes davam aos estados independentes que surgiram no al-Andalus com a descentralização do poder, primeiro após a queda do califado omíada de Córdova (1031) e depois após o debilitamento das dinastias norte-africanas, almorávida e almohada.
E.C.
Bibliografia:
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