Figanier, Joaquim (21 de Agosto de 1898, Lisboa – 15 de Agosto de 1962, Lisboa)
Fonte: A.A.V.V. 1972. Catálogo da Biblioteca Joaquim Figanier. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina.
Joaquim Fernando de Abreu Figanier nasce em Lisboa, a 21 de Agosto de 1898. Concluirá a sua licenciatura em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, após uma passagem inicial pelo curso de Bibliotecário-arquivista. Na mesma instituição, tomará contacto com a língua árabe pela primeira vez, sob a égide de David Lopes (1867-1942), de quem se tornará discípulo e que tanta influência exerceria nas obras que produzirá nas décadas seguintes. Completará, mais tarde, o curso da Escola Normal Superior, anexa à Faculdade de Letras, destinado à formação dos professores liceais. Exercerá funções no Liceu Passos Manuel, em Lisboa, bem como nos Liceus do Funchal e de Viseu e no Pedro Nunes, de novo na sua cidade natal, como professor de francês e, neste último, como professor-metodólogo. Entre 1932 e 1934, foi Leitor de Português na Universidade de Bordéus. Em antecipação da jubilação de David Lopes, que se daria em 1937, aperfeiçoou o seu domínio do árabe, entre 1936 e 1938, no Institute des Hautes Études Marocaines, em Rabat: ocupará o cargo do seu mestre, na Faculdade de Letras, até 1946, ano em que a docência do árabe se viu transferida para o ILAO (impondo um hiato na oferta desta cadeira na Faculdade que só seria interrompido em 1965, por Pedro Cunha e Serra), recém-criado sob os auspícios da Escola Superior Colonial, renomeada Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (1954), depois Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (1962) e, finalmente, em 1974, na sequência do 25 de Abril, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Acumulará estas funções com as suas responsabilidades no ensino liceal, primeiro no Liceu de Braga, mais tarde de novo no Liceu Pedro Nunes. A sua última estância estrangeira terá lugar na Universidade Católica de Paris, onde desempenha, de novo, as funções de Leitor de Português. Aposentar-se-á em 1959, por razões de saúde. Joaquim Figanier morrerá em Lisboa, a 15 de Agosto de 1962, a poucos dias de completar 64 anos de idade.
A biografia de Joaquim Figanier quadra bem com o percurso de outros intelectuais portugueses activos nas primícias do Estado Novo: a acumulação do magistério liceal com funções universitárias, ou, em alternativa, com uma actividade intelectual que extravasava o âmbito do ensino de liceu, é uma das marcas d’água de uma série de vultos da cultura portuguesa da época. A título de exemplo, refira-se o caso de Vergílio Ferreira que, a par da sua actividade de romancista, foi também professor no Liceu D. João III de Coimbra, bem como nos liceus de Faro, Bragança, Évora e, finalmente, no Liceu Camões de Lisboa; Newton de Macedo, célebre intelectual da I República, um dos responsáveis pela reforma da universidade que conduzirá à (efémera) primeira institucionalização da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1919, por decreto de Leonardo Coimbra, então Ministro da Instrução, leccionou no Liceu Gil Vicente de Lisboa, contando entre os seus pupilos o jovem Vitorino Magalhães Godinho; finalmente, Luís da Câmara Reis, um dos fundadores e principais dinamizadores da revista Seara Nova, foi também professor no Gil Vicente, tendo também ensinado aquele eminente historiador português que, muito mais tarde, o referirá, a par de Macedo, como sendo um exemplo da elevada qualidade do ensino liceal português dos anos 30’, num contraste marcante com os padrões de exigência que Magalhães Godinho encontraria mais tarde no ensino superior.
A originalidade de Joaquim Figanier nesta conciliação profissional reside na área de trabalho que escolheu: os estudos árabes e islâmicos. Contudo, ao contrário de David Lopes, cuja passagem pelos liceus foi bastante fugaz, Figanier manterá intacto o seu vínculo a este ciclo de estudos, como também o comprovam a produção de diversos materiais pedagógicos. Com efeito, compôs, em parceria com António Correia de Oliveira, uma antologia de autores franceses para uso dos estudantes, redigida em francês, bem como um dicionário de francês-português, este último em colaboração com José Monteiro Cardoso. Esta proximidade à cultura e língua francesas também se reflectirá nos tropos e nos motivos da sua historiografia, já pela convivência que manteve com Robert Ricard (1900-1984), um dos principais vultos da historiografia da presença portuguesa no Norte de África (e que sobre ele escreverá “Homme de grande culture […] il aurait dû occuper une place éminente dans l’enseignement supérieur de son pays”; [Ricard 1962, 467]), já pelas suas estadias em Bordéus, Paris e em Rabat, esta última até 1956 Protectorado francês de Marrocos.
Porém, o enquadramento intelectual de Figanier não ficaria completo sem a sua integração no mundo institucional do colonialismo português tardio. Embora não tendo nunca desempenhado funções oficiais em “províncias ultramarinas” como Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau, nem se tenha interessado pela história dessas possessões, nem ter deixado claro, nos seus escritos, nenhuma posição definitiva acerca do assunto, Joaquim Figanier leccionou na Escola Superior Colonial, cuja raison d’être era a formação dos quadros superiores do oficialato que serviria nos diversos pontos do império português, símile das suas congéneres europeias, como o seja a londrina School of Oriental and African Studies. De resto, aquela escola, a par da Junta de Investigações do Ultramar, fundada em 1963, antepassada do recentemente extinto Instituto de Investigação Científica Tropical, e do Arquivo Histórico Ultramarino (fundado em 1931), constituía o repositório mais importante de toda a intervenção portuguesa nos domínios africanos, indianos e extremo-orientais, em áreas tão díspares como a medicina tropical, a geografia dos trópicos, a zoologia, a geodesia, sem esquecer a história, a antropologia e a filologia de línguas autóctones. Finalmente, a sua obra mais comentada, História de Santa Cruz do Cabo de Gué, foi publicada por outro organismo de vincada feição colonialista: a Agência Central das Colónias, fundada em 1924, ainda sob a I República, com o objectivo de divulgar o conhecimento do império português junto do grande público. É interessante constatar como, a despeito de Marrocos não se apresentar já como um horizonte expansionista preferencial (à época, mais apetecível aos desígnios colonialistas franceses e, em menor escala, espanhóis), mas antes como uma entidade política com quem se estabeleciam relações diplomáticas amigáveis desde o abandono de Mazagão (1769), por decisão do Marquês de Pombal e, sobretudo, desde o Tratado luso-marroquino de 1774, uma obra respeitante à presença portuguesa no Magrebe ainda conhece o seu patrocínio neste caldo institucional. Tal poder-se-á ter dado pela circunstância fortuita de Figanier se encontrar assimilado a este dispositivo, fruto da transferência do árabe para o ILAO, mas foi uma escolha editorial que, dadas as suas características, também ilustra a percepção do Magrebe como parte de uma história que também incluía as “províncias ultramarinas”.
Em todo o caso, estas ramificações não devem desviar-nos da centralidade de David Lopes na composição da obra de Joaquim Figanier. Ainda que substancialmente menos prolífico que o seu antecessor, mercê certamente dos muitos afazeres profissionais que o consumiram ao longo da vida, este historiador lavra na terra arada por Lopes. Tal como este publicara uma monografia de síntese acerca da ocupação portuguesa de Arzila, sita na sub-fronteira cristã-muçulmana setentrional, com base nos Anais de Arzila de Bernardo Rodrigues, que também editara e publicara, Figanier publicará outra referente ao mesmo assunto, mas desta vez basculando a sua atenção para a sub-fronteira cristã-muçulmana meridional, mais especificamente para Agadir, designada nas fontes portuguesas como “Santa Cruz do Cabo de Gué/de Guer”. Nela, Figanier refere que, ainda que pré-ocupada por tribos berberes pertencentes a confederações baseadas na região do Sūs, a edificação da fortaleza da Agoa de Narba, em 1505, pelos portugueses, marca, em verdade, o momento fundacional da cidade de Agadir. Será tomada pela dinastia Sádida em 1541, dada a sua localização privilegiada como centro articulador do Magrebe com o comércio subsariano, e como forma de consolidação do prestígio de uma entidade política que, dez anos mais tarde, eliminará o sultanato Oatácida e unificará todo o Magrebe ocidental sob a sua autoridade. Figanier socorre-se principalmente da anónima Crónica de Santa Cruz do Cabo de Gué dagoa de Narba, editada por Pierre de Cenival (1888-1937), e das lacunares fontes árabes do período, demonstrando um conhecimento muito circunstanciado dos espécimes dos Archives Marocaines, bem como do Kitāb al-Istiqṣa Akhbār Dowal al-Maghrib al-Aqṣa, a primeira grande história de Marrocos, que o historiador aportuguesa como Istiqueça, da autoria de Aḥmad ibn Khālid al-Nāṣirī al-Salāwī (1834/35 – 1897), o mais importante historiador marroquino oitocentista, contemporâneo de Alexandre Herculano. É um trabalho pioneiro da historiografia portuguesa, importante não apenas para o estudo da presença cristã no Magrebe, mas também para a história de Marrocos no seu todo, por trazer à colação e concatenar as fontes cristãs com as fontes muçulmanas, num primeiro tentame de cotejo/confrontação insuficientemente seguido nas décadas subsequentes.
Na mesma senda se insere a tradução portuguesa de um texto descoberto por outro importante medievalista e arabista francês, de origem judaica, nascido na Argélia, Évariste Lévi-Provençal (1894-1956): trata-se de uma descrição de Ceuta, composta em 1422, setes anos volvidos sob a ocupação portuguesa, em língua árabe, por um antigo habitante da cidade chamado al-Ansārī. O texto conheceria também uma tradução francesa, da autoria do seu descobridor, bem como uma castelhana, da autoria de Joaquín Vallvé Bermejo (1929-2011), medievalista e arabista espanhol nascido em Tetuão, especialista no Magrebe medieval. Esta fonte, de inegável interesse histórico (de resto recentemente reanalisada por Luís Miguel Duarte, em conjunção com fontes portuguesas), traz-nos a anterioridade imediata da presença portuguesa, ainda que filtrada pela lente amarga de um agente que fora expulso da sua cidade natal em Agosto de 1415.
Finalmente, Joaquim Figanier destacou-se também no campo da numismática islâmica. Após uma série de publicações mais dispersas sobre o assunto, o Museu Numismático Português (hoje Museu Casa da Moeda) publica-lhe a obra de fundo acerca das moedas árabes (Figanier 1949), cuidadosamente sub-dividida em dois volumes: o primeiro estende-se desde a “criação do emirado espanhol” (que o autor situa incorrectamente em 711) até à conquista de Granada (1492), atravessando, por essa via, toda a história do al-Andalus; o segundo, parte deste último evento até “aos nossos dias”. Trata-se, ainda hoje, de uma obra de consulta obrigatória.
No entanto, Figanier não foi apenas um dos arabistas portugueses mais importantes da centúria anterior: foi também um dos primeiros autores que historiaram os estudos árabes e islâmicos enquanto área de investigação, tendo publicado uma extensa e bem documentada biografia de Frei João de Sousa (1730/35 – 1812), o célebre frade arabista de meados e finais de Setecentos. Este religioso, nascido e criado em Damasco, filho de pais católicos, tinha como língua materna o árabe, auto-designando-se, nos seus escritos nesta língua, como Yūḥanā al-Dimashqī. Extraordinariamente prolífico, trouxe-nos contribuições para o estudo das palavras portuguesas de origem árabe e para o estudo da documentação árabe com respeito aos portugueses no Magrebe. Figanier interessou-se por esta figura de forma sistemática, enquadrando-o no contexto da orientalística de finais de Setecentos, relacionando as suas origens damascenas com a sua condição de agente régio de alto nível, inaugurando, por esta via, um filão de investigação que teria sucedâneos importantes a posteriori, como mais recentemente Isabel Drummond Braga.
Joaquim Figanier afirmou-se, portanto, como um dos historiadores arabistas mais importantes que Portugal já produzira até então: capitalizando nas aportações de David Lopes, seu mestre e influência central, construiu uma obra historiográfica sólida e diversificada, no contexto dos estudos árabes e islâmicos, complementada pela produção manualística de instrumentos de aprendizagem para o ensino liceal. A criação ou ampliação de temáticas de investigação que empreendeu, mormente no que toca ao Magrebe sob domínio português, a preocupação visível pelo cotejo entre fontes cristãs e muçulmanas, a sua actividade de tradutor, bem como a cientificização precoce de estudos sobre a orientalística, imortalizam-no como uma das figuras incontornáveis do orientalismo de língua portuguesa do século XX.
G.M.R.
Bibliografia de Joaquim Figanier (selec.)
FIGANIER, Joaquim (1945), História de Santa Cruz do Cabo de Gué: Agadir 1505-1541, Lisboa, Agência Central das Colónias.
Idem (1947), “Descrição de Ceuta muçulmana no século XV”, Revista da Faculdade de Letras nº1, pp. 10-52.
Idem (1949), Moedas árabes: inventário e descrição, Lisboa, Museu Numismático Português.
Idem (1949), Fr. João de Sousa: mestre e intérprete da língua arábica, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Idem, CARDOSO, José Monteiro (1959), Dicionário francês-português, Braga, Livraria Cruz.
Idem, OLIVEIRA, António Correia de (1962), Anthologie des auteurs français: à l’usage des élèves du 3e cycle du lycée, Coimbra, Coimbra Editora.
Bibliografia passiva
A.A.V.V. (1972), Catálogo da Biblioteca Joaquim Figanier, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina.
AL-SALĀWĪ, Aḥmad ibn Khālid Al-Nāṣirī (1997), Kitāb al-Istiqṣa Akhbār Dowal al-Maghrib al-Aqṣa, Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner.
BRAGA, Isabel Drummond (2008), Missões diplomáticas entre Portugal e o Magrebe no século XVIII. Os Relatos de Frei João de Sousa, Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa.
CÉNIVAL, Pierre de (ed.) (1934), Chronique de Santa Cruz du Cap de Gué (Agadir), Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner.
DUARTE, Luís Miguel (2015), Ceuta. 1415. Seiscentos anos depois, Lisboa, Livros Horizonte.
GODINHO, Vitorino Magalhães (1968), Ensaios. Vol. I – “Sobre história universal”, Lisboa, Livraria Sá da Costa.
LEVI-PROVENÇAL, Évariste (1931), “Une description musulmane de la ville de Ceuta musulmane au XVe siècle, l’Iḫtiṣār al-aḫbār…publié et traduit, avec une introduction, des notes et un glossaire” Hespéris nº12, pp. 145-176.
NADIR, Mohammed (2013), As relações diplomáticas entre Portugal e Marrocos do Tratado de Paz (1774) ao Protectorado (1912), Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
RICARD, Robert (1962), “Joaquim Abreu Figanier (1898-1962)”, Al-Andalus vol. 27 (2), pp. 467-468.
VALLVÉ BERMEJO, Joaquín (1962), “Ijtisār al-Ajbār. Descripción de Ceuta musulmana en el siglo XV por al-Anṣārī”, Al-Andalus, nº27 (2), pp. 398-432.