SOUSA, Frei João de (c.1730-35, Damasco – 1812-01-29, Setúbal), arabista, professor de árabe, intérprete e tradutor ao serviço de D. José I (1714-1777, r. 1750-1777). Foi criado numa das missões de Barbadinhos franceses, onde privou com o padre Gabriel de Quentin. Os pais, ao fugirem da capital da Síria, devido a perseguições movidas aos católicos, instalaram-se em Beirute levando o jovem. Naquela cidade, o referido sacerdote, voltou a encontrá-lo, protegeu-o e permitiu-lhe o acesso ao Colégio dos Barbadinhos de Beirute, onde assistiu a aulas durante três anos. Aprendeu então francês e algum latim. Após a passagem pelo Colégio, esteve algum tempo em casa de um negociante francês com o qual partiu para a Europa, findos os 14 anos de residência daquele na Turquia, os quais não foram prorrogados pelo Grão Senhor. A viagem foi particularmente acidentada. Corsários ingleses tomaram a fortuna do negociante francês que se dirigia para a sua terra natal, fazendo-o mudar de itinerário. Optou por passar a Malta, dali a Nápoles e, por fim, a Lisboa.
Desconhece-se como frei João de Sousa terá passado os primeiros anos em Portugal, desde que se fixou em 1749 ou 1750. De qualquer forma, em certo momento, passou a residir em casa de Aires de Saldanha e Albuquerque Coutinho Matos e Noronha (1681-1756). Em 1755, após o terramoto, passou, como criado, para casa de Gaspar de Saldanha e Albuquerque, futuro reitor da Universidade de Coimbra (1757-1767). Em 1758, ambos foram para aquela cidade, João de Sousa, na qualidade de secretário. Desejando professar na Ordem Terceira da Penitência de São Francisco, conseguiu o intento no convento de Nossa Senhora de Jesus, em Lisboa, em 10 de dezembro de 1772, quando era provincial frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas (1724-1814).
Toda a vida de frei João de Sousa foi dedicada ao estudo, ensino e tradução do árabe falado e escrito. Poliglota, conhecia e falava francês, italiano, castelhano, maltês, português, além de um pouco de latim, turco e persa, mas tinha como língua materna o árabe. Foi autor de vasta obra, manuscrita e impressa, alguma dela motivada pelo seu trabalho de professor e de intérprete oficial de árabe, função que desempenhou desde 1784, passando posteriormente a oficial honorário e intérprete régio, em 1786, e, finalmente, a oficial do quadro do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, em 1792. Foi assim que acompanhou as missões diplomáticas marroquinas em Lisboa (1774, 1777-1778, 1780) e as portuguesas em Marrocos (1773-1774, 1790-1791) e Argel (1786-1787). De todas estas embaixadas elaborou diários, relações ou relatos que se mantiveram inéditos até ao século XXI, designadamente Relação da jornada que á cidade de Marrocos fez Joze Rollem Wan Dek… (1773-1774), Diario da primeira embaixada que da corte de Marrocos… (1774), Da segunda embaixada que El Rei de Marrocos… (1777), Diario da terceira embaixada que da corte de Marrocos (1780), Diario da segunda que da Corte de Lisboa (1790-1791) e Diario da jornada que Jacques Filippe de Landreset (1786-1787). Acresce ainda a atividade de tradutor por ocasião da chamada arribada das princesas, em 1793, cujo relato teve honras de impressão, sob o título Narração da arribada das princezas africanas…, certamente devido ao que foi entendido na época como um enorme exotismo.
Desde 1788, a título particular, e a partir de 1795, a nível oficial, ensinou o idioma árabe no Convento de Nossa Senhora de Jesus, substituindo frei António do Rosário Baptista. Antes, porém, já ensinara árabe em Alcobaça a mando do Abade Geral, frei Manuel de Mendonça, visitador e reformador do cenóbio, que elaborou um método ou plano de estudos confirmado por D. José I, em 1776. Em Alcobaça, foi substituir Paulo Hodar (†1780) que passou ao Convento de Jesus e, mais tarde, em 2 de janeiro de 1773, foi nomeado professor de hebraico, siríaco e árabe na Universidade de Coimbra. As atividades desenvolvidas como professor, tradutor e colecionador de vários tipos de documentos árabes implicaram a escrita de diversas outras obras. Enquanto docente, entendeu ser útil a publicação de gramáticas, léxicos e ainda fábulas morais. Neste contexto, são de assinalar a edição de Documentos arábicos para a história portugueza (1790), Vestígios da língua arábica em Portugal (1789), obra posteriormente acrescentada por frei José de Santo António de Moura (1770-1840), em 1830; e Compendio da grammatica arábica (1795). Frei João de Sousa escreveu ainda uma oração gratulatória em louvor de D. José I, Mandîhu fî hamdi sûrati ’lsultâni Yûsufa ’lawwali, em 1775, por ocasião da inauguração da estátua equestre do monarca, e um pequeno texto intitulado Doutrina christã em portuguez e arabico que se deve ensinar a qualquer mouro que quiser abraçar a nossa santa religião, destinado a doutrinar os reduzidos de origem muçulmana. Percorreu o Alentejo à procura de inscrições, colecionou moedas e examinou e leu manuscritos árabes, alguns dos quais traduziu. Foi académico correspondente da Real Academia das Ciências, desde 6 de dezembro de 1780, passando a sócio livre, em 1 de abril de 1791.
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Isabel Drumond Braga
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